Uma reflexão sobre a autocomposição e indisponibilidade dos direitos do Estado

A eficiência e a duração razoável do processo são dois objetivos centrais do Código de Processo Civil de 2015. Contudo, ao se observar que o Poder Público está presente em mais da metade de todos os processos que tramitam no Brasil, conclui-se que, sem a sua participação e uma mudança de postura, os objetivos nunca serão alcançados[1].
Para alcançar esses escopos, o CPC estabeleceu um sistema multiportas, em que se reconhece a existência de métodos adequados de solução de controvérsias pautados na consensualidade. Isso fica evidente no artigo 3º ao estabelecer que o acesso à justiça é alcançado pela busca de instrumentos consensuais de solução de controvérsias[2]. A consensualidade é buscada de pelo menos três maneiras: escolha do método consensual; resolução dos conflitos e prática de atos e negócios no sistema tradicional.
A mediação e a conciliação são métodos consensuais que alcançam a própria resolução de conflitos. A arbitragem é um método consensual pela escolha do procedimento[3]. O reconhecimento jurídico de pedido e o negócio jurídico processual buscam, respectivamente, solucionar o conflito rapidamente pelo reconhecimento da pretensão pelo réu em face do autor e a adaptação do procedimento ou de atos, poderes, faculdades ou deveres processuais às peculiaridades do caso concreto. Em todas essas medidas consensuais, é possível a participação do poder público.
A falsa compreensão da indisponibilidade do direito, no entanto, é um empecilho à aplicação desses institutos e procedimentos a esses atores. Tanto isso é verdade que poucas procuradorias regulamentaram os negócios jurídicos processuais e em um número menor ainda de unidades federativas houve a instalação de câmaras privadas de conciliação e mediação.
Direitos indisponíveis são aqueles inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis ou não transacionáveis[4]. Como se vê, o caráter indisponível do direito admite vários conceitos e facetas. Não é definido por apenas um critério. O direito é inalienável quando não pode ser transferido por ato entre vivos ou mortis causa. Em regra, os direitos patrimoniais são transmissíveis. No entanto, a patrimonialidade, por si só, não é capaz de atribuir a disponibilidade do direito. Basta observar que, em regra, os bens públicos são inalienáveis, sendo somente alienáveis os dominicais ou dominiais[5].
O direito intransmissível é aquele que não pode ter a titularidade transferida. É o que ocorre, por exemplo, com os direitos da personalidade em geral[6]. O direito irrenunciável é aquele que o titular não pode eliminar[7]. Os direitos não transacionáveis são aqueles que impedem concessões mútuas entre as partes de uma relação jurídica[8].
O poder público tem como uma de suas características cruciais a indisponibilidade, por ter sua atuação pautada no interesse público. A indisponibilidade do interesse público tem origem no princípio republicano de que os bens públicos pertencem a toda a população e não aos particulares[9].
Contudo, a indisponibilidade do direito não significa impossibilidade de composição. A autocomposição significa uma possibilidade de voluntariedade relacionada a algum dos elementos de uma relação jurídica[10]. As relações jurídicas são compostas por cinco elementos: sujeito, objeto, fato jurídico, vínculo jurídico e garantia[11]. Isso fica claro em relação a direitos indisponíveis ligados ao Direito Civil, como ocorre com a relação de alimentos em que existe indisponibilidade, mas é possível a composição em relação ao valor da prestação.
No caso do poder público, em grande parte das situações, é possível a composição em relação ao objeto, seja pela sua identidade, seja pela sua quantidade, garantia e, até mesmo, em aspectos relacionados ao vínculo jurídico. É justamente por isso que se afirma ser possível a composição em relação ao valor, à forma de satisfação, ao vencimento e ao modo de cumprimento[12]. Basta, para tanto, que haja autorização normativa.
O grande problema é que a ausência de compreensão sobre a possibilidade e utilidade de soluções consensuais para o poder público faz com que se criem empecilhos para a sua utilização nos próprios atos normativos que o autorizam. Isso decorre da ausência de conhecimento ou má compreensão entre os conceitos “indisponibilidade do interesse público” e “autocomposição”.
Um exemplo de texto normativo que cria embaraços é o artigo 3º da Lei 13.140/15. Ele tem o mérito de reconhecer a possibilidade de mediação para direitos indisponíveis. Contudo, confunde indisponibilidade, autocomposição e transação. Esse receio decorrente da não percepção precisa dos conceitos faz com que se exija a homologação judicial e a oitiva do Ministério Público para a mediação que envolva direitos indisponíveis[13].
A exigência de homologação judicial de forma indiscriminada pode gerar empecilhos para a aplicação da consensualidade para o Poder Público. Esse entendimento não se coaduna com a necessidade prática dos negócios jurídicos processuais, que somente exigem homologação em casos expressos[14] e nem mesmo com as câmaras administrativas de conciliação e mediação, que têm como objeto direitos indisponíveis que admitem autocomposição em aspectos específicos.
Como se vê, a indisponibilidade do direito não significa a impossibilidade de autocomposição, mas pode gerar obstáculos à sua implementação concreta por falta de precisão conceitual e barreiras injustificadas criadas pela própria legislação. Não se quer afirmar que atos de controle não possam ser empregados. Evidentemente, eles deverão estar presentes, mas a adoção indiscriminada da homologação judicial e da oitiva do Ministério Público para todos os casos é um elemento de dificuldade que não se coaduna com o objetivo da legislação processual civil.
O recurso aos meios de autocomposição pelo Poder Público parece evidenciar um renovado movimento de “fuga para o direito privado” (Flucht ins Privatrecht)[15], que reconhece a interpenetração e complementaridade entre Direito Público e Direito Privado, posto que não são separados por um abismo intransponível.[16] Fala-se até mesmo em uma “fuga do direito”, dada a utilização de mecanismos contratuais que neutralizam a via judicial, com o recurso a garantias e não a ações judiciais em face do inadimplemento, de modo a estabelecer certas condições ou até mesmo impedir a ação judicial.[17]
É o caso por exemplo da estipulação da chamada cláusula de garantia à primeira demanda (clause on first demand guarantee), utilizada inicialmente nos contratos de obras públicas. Trata-se de uma obrigação assumida por uma instituição financeira (o garantidor) a pedido de um cliente seu que necessita da garantia quanto ao pagamento de certa quantia, de modo a assegurar ao credor-beneficiário a transferência da soma acordada, mas sem a possibilidade de invocação de meios de defesa ou exceções, a partir do contrato que originou a operação.[18] Denominados de garantieverträge no Direito alemão, tais contratos constituem garantias autônomas, “com uma função semelhante a da fiança, porém desvinculada da obrigação principal. (…). A garantia vale por si mesma, independentemente da justificação de sua causa, pelo credor”.[19]
Diante do risco de descontinuidade dos projetos públicos em fase de implantação, o que forçaria os agentes públicos a assumir tais projetos caso as garantias ofertadas sejam insuficientes, vem se adotando a prática da pactuação de tal cláusula a fim de eximir “os bancos comerciais de responsabilidades processuais e riscos de perdas significativas no caso de inadimplemento na fase pré-completion de cada projeto”.[20]
Percebe-se, por fim, que a adoção de tais esquemas típicos do Direito Privado, a exemplo dos instrumentos consensuais de solução de controvérsias ou das cláusulas autônomas de garantia, permitem uma resolução mais eficiente das controvérsias que envolvam o Poder Público, resultando na redução de custos e na solução mais rápida dos conflitos, bem como na continuidade das obras e serviços públicos necessários ao desenvolvimento do país.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Confrontar também com FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Os negócios jurídicos processuais e a fazenda Pública. In: Revista de Processo, vol. 280, p. 353-375, Jun./2018.
[2] Art. 3º do CPC. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
[3] Art. 359 do CPC. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem.
[4] MATTOS NETO, Antônio José de. Direitos patrimoniais disponíveis e indisponíveis à luz da lei da arbitragem. In: Revista de Processo, vol. 122, p. 151-166 (acesso online p. 1-13), Abr./2005, p. 4.
[5] Art. 101 do Código Civil. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
[6] Art. 11 do Código Civil. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
[7] CUPIS, Adriano de. I diritti della personalità. Trad. portuguesa de Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p. 52.
[8] Art. 840 do Código Civil. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.
[9] TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: conseqüências processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem e ação monitória). In: Revista de Processo, vol. 128, p. 59-78 (acesso online p. 1-15), Out./2005, p. 1-2. “Primeiro, cabe examinar o tema sob o prisma do direito material. A indisponibilidade do interesse público é decorrência direta do princípio constitucional republicano: se os bens públicos pertencem a todos e a cada um dos cidadãos, a nenhum agente público é dado desfazer-se deles a seu bel-prazer, como se estivesse dispondo de um bem seu particular. Mais ainda: existem valores, atividades e bens públicos que, por sua imprescindibilidade para que o Estado exista e atue, são irrenunciáveis e inalienáveis. Vale dizer, no que tange ao núcleo fundamental das tarefas, funções e bens essencialmente públicos, não há espaço para atos de disposição. Mas essa afirmação comporta gradações. Existem atividades e bens que, em vista de sua absoluta essência pública, não podem ser abdicados ou alienados, ainda que mediante alguma contrapartida e nem mesmo com expressa autorização legal”.
[10] O enunciado 135 do FPPC foi categórico nesse sentido ao prever que “a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.
[11] PENTEADO, Luciano de Camargo. Família, criança e sujeito de direitos vulneráveis – breves notas à luz do pensamento tomista. In: Revista de Direito Privado, vol. 51, p. 433-461 (acesso online p.1-20), Jul.-Set./2012, p. 10-11. “As relações jurídicas apresentam cinco elementos, os sujeitos, os objetos, o fato jurídico que as gera, o vínculo do sujeito com os demais sujeitos, que sempre deve ser analisado em aspecto quantitativo e qualitativo para diferenciar as relações e situações jurídicas, que nada mais são do que feixes de relações jurídicas com grupos de sujeitos de direito heterogêneos e a garantia”.
[12] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Comentários ao enunciado 135. In. PEIXOTO, Ravi (coord.). Enunciados FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civil, organizados por assunto, anotados e comentados. Salvador: Juspodvm, 2018, p. 199-200. “Direitos teoricamente indisponíveis, posto que irrenunciáveis (por exemplo, direito subjetivo a alimentos) podem comportar transação quanto ao valor, vencimento e forma de satisfação”.
[13] Art. 3º da Lei n. 13.140/15. Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação.
§ 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele.
§ 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público.
[14] AVELINO, Murilo. Comentário ao enunciado 115. In: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Enunciados CJF: Conselho da Justiça Federal, Jornadas de Direito Processual Civil, organizados por assunto, anotados e comentados, Salvador: Juspodivm, 2019, p. 94-96.
[15] Trata-se de expressão atribuída a: FLEINER, Fritz. Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts. 8 ed. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1928, p. 326.
[16] No original: “Offentliches Recht und Privatrecht sind durch keine Kluft getrennt. Im Rechtsleben durchdringen und ergänzen sie sich gegenseitig” (FLEINER, Fritz, op. cit., p. 59).
[17] LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. 2 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 52.
[18] FRADERA, Vera Maria Jacob de. Os contratos autônomos de garantia. Revista Ajuris, n. 53 (nov./1991), p. 170.
[19] FRADERA, Vera Maria Jacob de, op. cit., p. 176.
[20] FLEURY, Fernando. O financiamento de concessões e parcerias público-privadas no Brasil. In: MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, DESENVOLVIMENTO E GESTÃO. Infraestrutura e Parcerias para o desenvolvimento: as alianças público-privadas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento, Planejamento e Gestão, 2016, p. 110.
Por Venceslau Tavares Costa Filho, professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE), professor permanente dos cursos de mestrado e doutorado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco e advogado. Silvano José Gomes Flumignan, professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE), mestre e doutor em Direito pela USP, procurador do estado de Pernambuco e advogado. E Ana Beatriz Ferreira de Lima Flumignan, professora da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da seccional de Pernambuco da Ordem dos Advogados do Brasil, mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e advogada.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 13 de janeiro de 2020, 8h10
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